Há dois anos foram captadas as primeiras ondas gravitacionais emitidas por buracos negros. Grupo do Técnico testa limites da teoria de Einstein
Há alguns meses, Vítor Cardoso, físico e coordenador do grupo de gravitação do Instituto Superior Técnico, tinha acabado de dar uma palestra numa escola do Porto quando uma aluna veio ter com ele. A estudante contou-lhe que tinha sido surda toda a sua vida mas, pouco tempo antes, fizera um implante que lhe dera acesso a toda uma dimensão que antes lhe estava vedada. "Primeiro foi a confusão, o som muito alto, o cérebro a tentar lidar com aquelas informações que lhe chegavam. Mas depois deu por si a surpreender-se ao perceber que conseguia entender o que as pessoas lhe diziam."
Naquele momento, professor e aluna perceberam que ela era a versão, em carne e osso, de uma analogia que ele e muitos outros físicos usavam para explicar a importância da primeira deteção de ondas gravitacionais, em setembro de 2015, por um equipamento que vinha a ser desenvolvido há duas décadas nos Estados Unidos.
Antes dessa primeira deteção, nomeadamente a partir de 2005, recorrendo a supercomputadores, já tinha sido possível começar a resolver e demonstrar as complexas equações de Albert Einstein, a demonstrar matematicamente que o que o cientista alemão dizia sobre os buracos negros, sobre a gravidade, sobre a relação de forças que molda o universo batia certo.
Tal como a aluna surda sabia que o som existia, mesmo nunca tendo ouvido, os cientistas também estavam convictos de que as ondas gravitacionais existiam, apesar de nunca as terem antes captado. De resto, explica Vítor Cardoso, só esse trabalho prévio, esses cálculos realizados por supercomputadores que chegavam a levar "meses" a resolver as equações possibilitaram o acontecimento de 2015. "Só conseguimos encontrar uma coisa se soubermos muito bem como a procurar." Mas a partir daquele momento, mais do que uma validação das teorias, dos cálculos, abriu-se toda uma nova janela para o universo. "Esta deteção significa que nós agora temos, por assim dizer, um novo olho, que vai conseguir olhar lá para fora e ver buracos negros como os olhos normais não conseguem ver. Ou seja: testar as coisas que nós estamos a estudar em teoria."
Varinhas mágicas da matéria
Na cultura popular, os buracos negros são muitas vezes imaginados como assustadoras forças de destruição, capazes de devorar toda a matéria que os rodeia. Mas esta descrição, defende o físico, é francamente injusta. "Um buraco negro é muito mais uma fonte de vida do que uma fonte de morte", assegura. E cair num buraco negro "é muito mais difícil do que cair na Terra".
Nos últimos 20 anos, além de chegarem à "grande certeza de que os buracos negros existem", os cientistas descobriram que estes são forças vitais capazes de moldar o universo. "Praticamente todo o universo que nós conhecemos, as estrelas, o Sol, nós próprios são mais ou menos produto do facto de esses buracos negros existirem", descreve. "Isto é, o buraco negro, sabemos agora, é um bocado como a varinha da cozinha, é uma força que mexe a matéria no universo e que faz as coisas acontecerem." Se estes não existissem, garante, "o universo seria um sítio muito mais aborrecido".
Porque é que as ondas gravitacionais são importantes para a sua compreensão? Porque são um testemunho, com milhões de anos, das dinâmicas envolvidas nesse processo de transformação.
"A Terra não cai no Sol porque não perde muita energia. Mais cedo ou mais tarde, o Sol é que vai cair na Terra, mas essa é outra história. Mas quando os objetos são buracos negros, ou algo de semelhante, que se deslocam a velocidades muito grandes e estão muito próximos um do outro, eles começam a emitir ondas gravitacionais."
As ondas correspondem à perda de energia que, inevitavelmente, conduz ao choque entre esses objetos. A sua análise permite reconstituir os acontecimentos, mas também descrever o ambiente onde estas forças evoluem, porque a dimensão da perda de energia está diretamente relacionada com a presença de matéria escura. "A observação de ondas gravitacionais permite perceber como é que a matéria escura está distribuída no universo. Em particular, já nos permitiu excluir alguns tipos de matéria escura."
Menos de dois anos após a deteção destas ondas, cientistas de todo o mundo já fizeram descobertas que fizeram evoluir radicalmente o conhecimento sobre este tema. "Já sabemos que existem os buracos negros, sabemos calcular a massa deles, sabemos onde é que eles estão com uma precisão razoável, como já começámos até a fazer coisas que eu diria que eram extraordinárias há cinco anos, que é usar estes acontecimentos para dizer algo mais acerca do que existe no universo."
É também este o trabalho do grupo do Centro Multidisciplinar de Astrofísica liderado por Vítor Cardoso. No último ano, além de confirmarem que a informação obtida das ondas gravitacionais é compatível com a existência dos buracos negros, verificaram também que esta "não exclui muitos outros objetos", previstos por teorias alternativas às de Einstein.
Testar os limites das teorias do cientista alemão é precisamente o trabalho que têm agora em mãos, contando com um apoio - no valor de 1,5 milhões de euros - do Centro Europeu de Investigação.
Astrofísico reconhecido a nível mundial
De cabelo comprido apanhado atrás das costas e T-shirt e um discurso descontraído, em que recorre com frequência a exemplos mundanos para facilitar a compreensão de temas altamente complexos, Vítor Cardoso, 42 anos, é em muitos aspetos a antítese do formalismo que o cidadão comum esperaria encontrar num investigador e académico com o seu estatuto. Parece aquele professor de Matemática que todos gostaríamos de ter tido na adolescência. Mas é, na realidade, um dos astrofísicos mais bem-sucedidos que Portugal já deu à ciência. Professor do Instituto Superior Técnico, lidera o grupo de gravitação do Centro Multidisciplinar de Astrofísica (CENTRA), no Departamento de Física desta instituição. Tem um livro e mais de 1550 artigos científicos publicados sobre ondas gravitacionais e buracos negros. Além de sucessivas bolsas do European Research Council - o financiador europeu da elite dos investigadores do continente -, o trabalho de Vítor Cardoso foi distinguido recentemente pelo Presidente da República, que lhe atribuiu a medalha da Ordem de Sant"Iago da Espada.
Equipa é uma verdadeira sociedade das nações
O grupo de gravitação do CENTRA combina cientistas de várias origens e competências, assemelhando--se a uma pequena sociedade das nações. Laura Bernard, investigadora francesa, tem como principal tarefa estudar o movimento de corpos sob a ação de ondas gravitacionais. O investigador japonês Masashi Kimura dedica-se a estudar teorias alternativas da gravidade. George Pappas, grego, estuda estrelas de neutrões. E David Hilditch, britânico, estuda a resolução das equações de Einstein em computadores. Essa é também a tarefa do português Miguel Zilhão. A equipa inclui ainda os técnicos Sérgio Almeida e Miguel Torrinha, cuja função é garantir o funcionamento de outro membro inestimável do grupo: o supercomputador Baltasar Sete Sóis, cujo nome é inspirado na personagem principal de Memorial do Convento, de José Saramago, que se caracterizava por apenas ver à luz. Lorenzo Annuli, Miguel Ferreira, Jorge Lopes, Kyriakos Destounis e Rodrigo Vicente são alunos de doutoramento que estudam como a matéria escura se comporta em redor de buracos negros.
Fonte: DN
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