No laboratório militar, todos os lotes de medicamentos são testados nas matérias-primas, durante a produção e no final. © Leonardo Negrão/Global Imagens |
Fabricam medicamentos para três pessoas como para 20 mil. O laboratório militar produz cada vez mais fármacos que não compensam financeiramente à indústria. Dá resposta à rutura de stocks e é responsável pela reserva nacional de medicamentos.
Há três crianças, em Portugal, diagnosticadas com a doença neurológica de Menkes. Uma síndrome genética muito rara, que fragiliza os músculos e o cérebro, impedindo um desenvolvimento normal. A cura não existe, mas há uma forma de ganhar tempo: um medicamento que prolonga a vida para lá do prognóstico fatal do primeiro ano. Chama-se histidina de cobre e só o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos o produz e leva até aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O fármaco não tem mais-valia comercial e, por isso, não compensa a nenhuma farmacêutica empenhar-se em dar mais tempo de vida às três crianças que têm esta doença. É um dos cerca de 50 medicamentos abandonados pela indústria que o laboratório garante. No final de 2018, eram 44 fármacos nestas circunstâncias, segundo informações prestadas à Associação de Oficiais das Forças Armadas.
Produzem analgésicos, anti-inflamatórios, expetorantes, que não se encontrem comercializados ou autorizados em Portugal, mas que são imprescindíveis na rede hospitalar do SNS."Vamos tentando manter alguma independência, através do Exército, no acesso aos mediamentos", diz o tenente-coronel João Carmo, subdiretor do laboratório. "O nosso foco é o que não existe no mercado nacional. Colmatamos as falhas de medicamentos que não são de todo produzidos para as doenças raras e as ruturas de fornecimento no mercado. Personalizamos muito a nossa medicação, consoante a necessidade do doente", explica a major Inês Martins, chefe do departamento de controlo de produção do laboratório. Todos os lotes de fármacos têm uma quantidade diferente, ditada pela necessidade. Se dão forma à receita prescrita para um só doente também respondem com vinte mil saquetas de metadona (o narcótico usado no tratamento da toxicodependência) para o programa do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). O laboratório é o único produtor e distribuidor de metadona em Portugal, por apresentar condições de segurança especiais durante o processo de produção. No ano passado, foram produzidas cerca de três milhões de saquetas para 14 mil tratamentos.
Outro caso paradigmático é o dos medicamentos para a tuberculose, cuja produção de alguns fármacos foi descontinuada ou tem como prioridade outros mercados que não o português, por compensar menos monetariamente. No laboratório, o ritmo de produção varia ainda de acordo com a exigência da atualidade. Têm de estar preparados para intervir em casos de emergência nacional ou internacional, como aconteceu, em 2009, durante a epidemia de gripe A, quando tiveram de fornecer rapidamente a preparação oseltamivir. Todos estes medicamentos são produzidos num mesmo edifício na Avenida Dr. Alfredo Bensaúde, nos Olivais (Lisboa), onde as marcas do tempo vão sendo mascaradas com obras. Tudo acontece aqui, desde os testes às matérias-primas e à produção, ou do controlo de qualidade à distribuição. E até à venda, no rés-do-chão, onde está uma das sete farmácias militares do país.
Atrás do balcão está Carla Alves, 46 anos. Recebe uma professora já reformada, mulher de um militar, que veio procurar uma pomada para aplicar na perna, à venda em qualquer farmácia civil, mas aqui há uma pequena tolerância no preço para o casal. Carla ouve, atenciosa, a história da perna dorida e procura a melhor solução nas prateleiras atrás de si. Este é o seu trabalho há 25 anos. "A oportunidade surgiu em 1994, quando o laboratório estava a passar uma fase catastrófica. Falava-se em encerrar, tal como há dois anos. A maior parte dos funcionários tinha ido para a reforma ou pré-reforma e a ideia era fechar. Entrei na fase KO", relembra. Nada lhe dizia que iria ficar tanto tempo, mesmo assim quis fazer parte da equipa. "Eu gosto de desafios e nada é definitivo."
Carla Alves é uma das duas técnicas que trabalham na farmácia do Laboratório Militar. Atende militares, familiares direitos e os civis que trabalham no edifício.
© Leonardo Negrão/Global Imagens
Antes de terminar o curso de técnica auxiliar e concorrer para a farmácia, trabalhou no armazém. Uma caixa de betão de grandes dimensões com um corredor rolante que trespassa a sala para mover as paletes de medicamentos. É um armazém igual a tantos outros, não fosse o que se guarda lá diferenciado. E isso faz-se anunciar logo à entrada, quando nem o cartão de identificação da diretora do laboratório - a coronel Margarida Sá Figueiredo - permite abrir a porta.
Três ou três toneladas
"Estamos habituados a ver meia dúzia de caixas nas farmácias. Aqui funcionamos à palete", diz o coronel João Carmo. E os medicamentos não estão todos à vista, há mais do que um espaço para evitar a concentração. A reserva que existia nestas salas permitiu carregar o avião C130 "com cerca de uma tonelada de medicamentos e de dispositivos médicos", para apoiar as vítimas do ciclone Idai nas primeiras horas. Nos dias que se seguiram à catástrofe natural, em março de 2019, que afetou 3,8 milhões de pessoas e fez mais de 750 mortos, foram enviados mais carregamentos. O laboratório está preparado para responder a situações de emergência por mar, terra ou ar. Os produtos são testados para resistirem a todos os ambientes por seis profissionais nos laboratórios químico e microbiológicos, desde as matérias-primas até ao produto final, sempre que há um novo lote.
A vaselina líquida esterilizada, usada na recuperação de queimaduras - outro medicamento há muito abandonado pela indústria - tem mais de 50 anos de produção na casa. Mesmo assim, regressa a cada novo lote à bancada do laboratório químico. O próximo carregamento já está pronto, tem rótulo, e em breve seguirá para os hospitais, nomeadamente para a unidade de Queimados do Hospital da Prelada, no Porto. A experiência do fabrico da vaselina vem da guerra e não caiu em desuso, tal como muitos outros conhecimentos desenvolvidos nestas paredes. Foi a necessidade que inspirou a procura de soluções médicas. A primeira Guerra Mundial (1914-1918) evidenciou que era preciso encontrar uma alternativa mais rápida e económica para responder aos ferimentos dos militares, garantindo fármacos nas frentes dos conflitos. Assim, em 1918 nasce o laboratório sob o desígnio de Farmácia Central do Exército. E desde então que funciona como uma espécie de INEM das grandes catástrofes, antevendo todo o género de situações complexas, com planos de atuação rápidos. Para enfrentar um desastre nuclear será "imprescindível nas primeiras horas" iodeto de potássio, por isso "temos milhares de cápsulas disponíveis, bem como matéria-prima para fabricar muitas mais, rapidamente", garante o subdiretor.
O laboratório militar está sob a direção da coronel Margarida de Sá Figueiredo (ao centro). O tenente-coronel João Carmo (à esq.) é o subdiretor da instituição centenária e a major Inês Martins coordena o departamento de controlo de produção.
© Leonardo Negrão/Global Imagens
Mais produção ou dificuldades?
Cristina Nobre trabalha no piso da produção. Hoje foi adjudicada para a sala onde é produzida a metadona. Bata branca, máscara a proteger as vias respiratórias, luvas e sapatos descartáveis, está equipada. É uma das quatro assistentes técnicas a trabalhar neste setor. Tem 55 anos e há 33 que vem todos os dias do Montijo para os Olivais. "Quanto entrei havia 230 pessoas aqui", recorda. Hoje são menos de metade: nove militares e 91 civis.
Cristina Nobre tinha o sonho de trabalhar com análises clínicas.
Concretizou-o através do laboratório, onde trabalha há 33 anos.
© Leonardo Negrão/Global Imagens
Tinha acabado o 12.º ano e uma prima afastada, que ali trabalhava no departamento de contabilidade, falou-lhe na vaga que abrira. O seu sonho era seguir análises clínicas e a formação que recebeu do Exército foi a melhor oportunidade que poderia ter tido para trabalhar neste âmbito. "Era muito nova, tinha 22 anos, trabalhava numa loja e queria outro futuro", diz. Desde então repete a mesma rotina: chega, veste a farda, desinfeta-se e começa. Trata tudo por tu. "Isto é a máquina de esterilizar o material. Atinge um máximo de 134 graus", diz apontando para a panela de pressão que ocupa uma sala inteira.
Conseguiu concretizar o seu objetivo de trabalhar em análises clínicas, uma das valências do Laboratório Militar, que não se concentra apenas em salvar vidas. Nas mesmas instalações, fazem ainda ensaios a águas para consumo humano ou de piscinas, controlo microbiológico de ambientes como blocos operatórios para hospitais.
Mesmo assim, a possibilidade de aumentarem as suas competências tem sido várias vezes abordada. O PCP insiste nesta ideia, tendo já apresentado dois projetos de lei no sentido de o laboratório dispensar ao Serviço Nacional de Saúde mais do que os medicamentos abandonados, reduzindo assim a dependência dos hospitais públicos para com as farmacêuticas. E assumindo mais responsabilidades no combate à falta de medicamentos nas unidades hospitalares, que enfrentam, todos os dias, uma ausência de 40% dos fármacos de que precisam, segundo um estudo da Associação dos Administradores Hospitalares, divulgado no final do ano passado. O PCP quer ainda alterar a designação da instituição para Laboratório Nacional do Medicamento e que este funcione em articulação com outros institutos, centros de investigação e universidades. Em dezembro voltaram a fazer entrar na Assembleia da República esta proposta, já discutida no ano passado e rejeitada, com os votos contra do PS e do PSD e abstenção do CDS e do PAN. Só o Bloco de Esquerda se mostrou favorável à iniciativa.
Mas tem o laboratório possibilidade de aumentar o seu rendimento? "Nós temos capacidade de dar resposta ao que estamos a fazer neste momento. Não se pode fazer tudo", responde a diretora, a coronel Margarida de Sá Figueiredo. "A nossa capacidade está a ser usada ao máximo", garantia momentos antes a major Inês Martins.
A instituição já produz meia centena de fármacos para o SNS, a solução para
uma pessoa com doença rara e para vinte mil toxicodependentes em tratamento.
© Leonardo Negrão/Global Imagens
O tenente-coronel António Costa Mota, presidente da Associação de Oficiais das Forças Armadas, vai mais longe e relembra as denuncias de constrangimentos que chegam até à associação. "Por diversas vezes, o laboratório esteve em risco de ser extinto por despacho ou por asfixia financeira. Houve alturas em que os funcionários tiveram de pôr dinheiro do seu bolso para comprar matérias para produzir medicamentos que eram a resposta a casos de vida ou de morte", diz. Esse tempo já acabou, mas António Costa Mota indica que ainda existem problemas. "O laboratório militar fez um pedido de 17 milhões de euros ao ministério para elevar algumas áreas por forma a termos maior capacidade de resposta a situações extremas. Com a estrutura que temos hoje estamos a dar resposta, mas à custa de muito trabalho extra das pessoas que trabalham no laboratório. Falta pessoal e o próprio edifício e equipamentos não são suficientes. O ministério negou [o dinheiro], preferiu esperar por uma catástrofe e só agir depois."
Confrontada com esta perspetiva, a diretora afirma: "Nós nunca podemos dizer que os recursos financeiros e os humanos não podem ser melhorados, mas tentamos sempre reajustar-nos com os meios que temos para cumprir a nossa missão", continua. No entanto, faz questão de sublinhar que a fase de indefinição do laboratório já foi ultrapassada a 31 de outubro de 2019, data em que a instituição deixou de ser o último estabelecimento fabril (condenado pelo Tribunal de Contas à extinção) e passou a ser uma unidade do Exército.
A regulamentação mudou, mas o mercado é o mesmo e "está a atravessar uma fase estranha. Há um investimento muito grande em medicamentos inovadores, que são altamente remuneratórios e onde é fácil ir buscar o retorno da investigação, mas tendencialmente há um abandono de linhas de produção de medicamentos que são precisos, mas que são extremamente baratos e que não compensam", indica o coronel João Carmo. Esses são adjudicados ao laboratório, que tem de cumprir uma missão de serviço público. E é assim que querem continuar. Cristina a produzir e Carla a vender medicamentos, que tanto podem servir a vinte mil pessoas como a três.
Fonte: DN
Sem comentários:
Enviar um comentário