Dele contava-se que antes de atacar mandava o corneteiro tocar porque não lhe parecia decente atacar um homem desprevenido. A sua vida dava muitos filmes. E confronta Portugal consigo mesmo.
Por Helena Matos
“Eu não fico cá. Ou me mandam para uma zona operacional ou fujo daqui”. Corria o ano de 1964. Marcelino da Mata não aguenta mais a tranquilidade da vida no quartel-general, em Bissau. Na verdade não precisou de fugir do quartel-general de Bissau pois conseguiu ir para Farim, onde em escassos dias convenceu o Tenente-Coronel Agostinho Ferreira a dar-lhe autorização para constituir um grupo de operações especiais.
“Quando me apresentei ao comandante, o Ten-Coronel Agostinho Ferreira, afirmei-lhe querer formar um grupo de operações especiais. Ele não concordou… Então, para mostrar que podia fazer tal actuação, num determinado dia peguei em cinco homens e saí do quartel em direcção a uma base do PAIGC, situada a 3,5 kms de Farim, numa destilaria de aguardente. Atacámos à noite e trouxemos nove presos, carregando 65 armas apreendidas. Às 6 horas da manhã já estava a bater à porta do quarto do comandante, a chamá-lo. Ele não queria aparecer, mas insisti. Quando surgiu, perguntou o que é que eu queria dele. Disse-lhe: “É para mostrar armas”. Ripostou: “E quais são as armas que eu não conheço?”. Respondi: “Estas não conhece, pois são do PAIGC”. Espantado, perguntou-me como tinha sido a actuação. Respondi-lhe: “Olhe! Eu nunca digo como faço as minhas operações. Fui lá, matei alguns e trouxe estes”. Disse ele: “Então deixa os prisioneiros andar com armas?” Retorqui eu: “Não faz mal; então não são homens como nós?!…”
Nos dias seguintes, Marcelino da Mata continuou a levar a cabo o que designava como “suas operações”, operações essas que descreve a Amaro Bernardo quando este o entrevista para o livro “Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros. Guiné”. Até que o inevitável acontece. Uma manhã, o Tenente-Coronel Agostinho Ferreira chamou o 2.º comandante: “Diz lá àquele tipo que pode formar o grupo de operações especiais”. Marcelino da Mata lembra: “Foi a partir daí que formei o grupo Os Roncos”.
Da “Tridente” à “Mar Verde”
Pode parecer estranho, mas a carreira militar de Marcelino da Mata começou por acaso: a 3 de Janeiro de 1960, quem devia ter entrado no CIM-Bolama era um seu irmão. Mas Marcelino foi ao centro de recrutamento informar-se sobre a situação do irmão e já não saiu. Tinha então 19 anos. Inicialmente, a sua principal mais-valia não é a forma como combate mas sim o domínio dos vários dialectos falados na Guiné.
Em 1963 vai para Angola fazer um curso de comandos. Já em 1964, regressa à Guiné a tempo de participar na “Operação Tridente”, que visava expulsar a guerrilha das ilhas da região do Como. Foram dois meses e meio entre pântanos, mato e lodo. Do Como, as tropas portuguesas trouxeram uma vitória — e Marcelino da Mata as suas primeiras cruzes de guerra.
A Torre e Espada vai ganhá-la anos mais tarde por ter resgatado uma companhia que fora aprisionada na zona da fronteira com o Senegal. Marcelino da Mata chefia um grupo de 19 homens que consegue não só enfrentar os guardas do PAIGC mais os soldados senegaleses como ainda levar os soldados portugueses pelos mais de 40 quilómetros que os separavam da Guiné. Diz quem lá esteve que o grupo de Marcelino da Mata não só fez tudo isto como, uma vez colocados os soldados a salvo, ainda voltaram atrás para repelir o PAIGC. Não será a única vez que o seu arrojo o leva a operações fora do território da Guiné.
Na noite de 21 para 22 de Novembro de 1970, Marcelino da Mata é um dos militares portugueses que entram secretamente em Conakry para levar a cabo uma das mais audaciosas e arriscadas operações concebidas pelas forças armadas portuguesas, a “Mar Verde”. O grupo de Marcelino da Mata tem 40 homens e é chefiado pelo alferes Abílio Ferreira. O objectivo deste grupo, designado Oscar na operação Mar Verde, é o quartel da Guarda Republicana, transformado em prisão.
“Seguimos para a porta de armas do quartel e ali demos com três civis que estavam a avisar as sentinelas de que tinham visto um grupo armado em direcção ao quartel. A sentinela fugiu e fechou o portão. Atirei-me de cabeça contra a janela da casa da guarda e matei o sargento com o meu sabre. Dei a volta e abri o portão, mas o alferes foi morto à entrada, com uma rajada na cabeça disparada por uma das sentinelas.” Foi desta forma que Marcelino da Mata recordou o episódio na entrevista que deu a António Luís Marinho e que este incluiu no seu livro “Operação Mar Verde”. Morto o alferes Ferreira, Marcelino da Mata assumiu a liderança do grupo.
O grupo Oscar cumpriu o que se esperava dele. No fim, Marcelino e os seus homens carregaram com o corpo do alferes para o levarem para as embarcações que os reconduziriam à Guiné (a operação “Mar Verde” era uma operação secreta levada a cabo num país estrangeiro, logo era muito reduzido o tempo que os militares portugueses podiam permanecer em Conakry). No caminho para o porto, o carro avariou. Sob o comando de Marcelino da Mata, os homens do grupo Oscar voltam ao quartel, combateram de novo, venceram de novo e arranjaram a viatura que lhes permitiu chegar in extremis ao porto onde as embarcações portuguesas já se preparavam para partir.
“Sou o Marcelino”
Em 1973, Marcelino da Mata constitui Os Vingadores, um grupo de tropas especiais constituído por 18 negros.
Operam com grande autonomia. Fazem operações de grande risco: quatro ou cinco homens entram no Senegal e colocam minas em locais estratégicos, fazem apoio às tropas regulares e marcam presença em operações históricas como a “Ametista Real”. Esta operação com nome de joia teve lugar a 19 de Maio de 1973, o objectivo era a base do PAIGC em Kumbamory, no Senegal. Marcelino da Mata está com seis homens do seu grupo. Combatem, mas sobretudo conseguem fazer ir pelos ares um importante paiol. No fim, Marcelino e o seu grupo carregam às costas com um dos seus que ficou ferido e acabam quase a ser vítimas do fogo amigo – eles eram todos negros e não vestiam fardamento regular pelo que eram frequentemente confundidos com guerrilheiros do PAIGC.
“Sou o Marcelino”– terá gritado para dentro do quartel. Dois meses antes foi também com um “Sou o Marcelino” que se apresentou ao piloto Miguel Pessoa que se ejectara do seu avião atingido por um míssil e que ele e o seu grupo acabavam de resgatar no chamado corredor da morte.
Nos palcos de guerra, Marcelino da Mata não precisava de indicar patente, companhia ou aquartelamento. Bastava-lhe dizer “Sou o Marcelino”.
Quando chega 1974, a sua folha de serviço é impressionante: participou em 2414 operações militares que lhe valeram meia centena de louvores por actos de bravura em combate. Recebeu a Torre e Espada, três Cruzes de Guerra de 1.ª classe, uma de 2.ª e outra de 3.ª. Mas para Marcelino da Mata vai começar um combate bem mais traiçoeiro e doloroso do que qualquer um dos que travou na Guiné.
Salvo pelo estilhaço de granada
Apesar de ter participado em mais de duas mil operações militares, algumas delas muito violentas, Marcelino da Mata nunca foi gravemente ferido. A única vez que precisou de tratamento hospitalar de maior cuidado aconteceu por causa de uma granada, inadvertidamente rebentada por um homem do seu grupo, para mais dentro do quartel. No Hospital de Bissau detectam-lhe um estilhaço alojado junto à rótula. É enviado para Lisboa. Só que entretanto acontecera o 25 de Abril. Há quem veja na transferência de Marcelino da Mata para Lisboa um estratagema do MFA para o manter longe da Guiné e, desse modo, ser facilitada a transferência do poder para o PAIGC. Afinal, uma das grandes preocupações do PAIGC era terem de enfrentar a resistência das três companhias de comandos negros que faziam parte das Forças Armadas portuguesas, mais a mais se estes comandos tivessem a chefiá-los um militar com as características de Marcelino da Mata. Ou, pelo contrário, terá sido a transferência de Marcelino da Mata para Lisboa a forma possível de o salvar do pelotão de fuzilamento que na Guiné “libertada” se estava a tornar o destino dos comandos negros?
Tivesse o ferimento justificado ou não a sua transferência para Lisboa, Marcelino da Mata rapidamente percebe que já não pode voltar à Guiné, pois está proibido de aí entrar pelas novas autoridades. Pior, caso regressasse tinha sérias razões para temer pela sua vida. A Marcelino da Mata chegam informações que confirmam os piores temores sobre o futuro da Guiné: ainda antes da independência daquele território, Marcelino da Mata sabe do fuzilamento de 1.º sargento Zeca Lopes, um dos membros dos Vingadores.
Depois é a vez do tenente Tomás Camará, que ao regressar à Guiné foi preso no aeroporto, levado para Cumeré e fuzilado.
Em Agosto de 1974, o destino trágico de vários destes homens começa a confirmar-se mas não chega a ser notícia. É um facto não nomeável até que se torna um facto consumado. Tão consumado que Otelo Saraiva de Carvalho, para explicar as dificuldades causadas à revolução portuguesa pelo facto de não se terem levado para o Campo Pequeno logo a 25 de Abril de 1974 “algumas centenas ou uns milhares de contra-revolucionários”, não hesita em dar o exemplo do PAIGC que, após a Guiné se ter tornado um país independente, “fuzilou imediatamente e enterrou dezenas, mas dezenas de elementos contra-revolucionários”. “Matararam-nos e enterraram-nos! E não houve uma única linha nos jornais a tratar deste problema!”.
Otelo tinha razão no que respeita aos jornais: as pesadas multas aplicadas pela Comissão Ad-Hoc para o Controlo da Imprensa, Rádio, Televisão, Teatro e Cinema a todas as notícias que dessem uma imagem menos positiva da “libertação das colónias” cortavam pela raiz qualquer veleidade nesta matéria. Note-se, contudo, que a maior parte dos jornalistas partilhava da versão oficial sobre o sucesso daquilo a que chamavam descolonização e nem sequer os preocupava a decisão das autoridades militares da Guiné de suspenderem as reportagens de Roby Amorim unicamente porque estas relatavam a decisão de vários oficiais das Forças Armadas Portuguesas de entregar aquartelamentos ao PAIGC sem aguardar pelas negociações.
Mas se é certo que transferência para Lisboa salvou a vida a Marcelino da Mata também é verdade que esta frase só é absolutamente válida até 17 de Maio de 1975.
Encurralado
A 17 de Maio de 1975, Marcelino da Mata, ouve o seu nome nas notícias que escuta na rádio, em Queluz, onde residia: diziam-no preso. Ao ouvir isto, Marcelino da Mata comete um erro que quase lhe iria a custar vida: resolve apresentar-se naquela que é agora a sua unidade, o Regimento de Comandos n.º 1. Mas logo é levado para o Regimento de Artilharia Ligeira de Lisboa (RALIS).
Marcelino da Mata chega ao quartel símbolo do PREC durante a tarde do dia 17 de Maio. Começam por lhe dar um papel para que escrevesse tudo o que sabia sobre o Exército de Libertação de Portugal (ELP), uma organização terrorista criada em Espanha pelos afectos ao general Spínola. Entretanto cai a noite desse dia 17 de Maio. Pouco depois da meia-noite, Marcelino da Mata começa a ser torturado.
A tortura arrasta-se durante mais de sete horas, ao longo das quais os interrogadores-torturadores vão mudando. Por vezes chamam-se entre si, o que permite a Marcelino da Mata dar nomes aos civis e militares que o interrogam: um furriel chamado Duarte, o capitão Quinhones e dois militantes do MRPP, um tratado por Ribeiro e outro por Jorge. É aliás a este último que Marcelino da Mata diz que o capitão Quinhones ordenou “que pegasse num fio eléctrico e me torturasse, tendo-me este dado choques nos ouvidos, sexo e no nariz”. A estes nomes há ainda que juntar o de Leal de Almeida. Marcelino da Mata conhecia Leal de Almeida da Guiné. Ora, em 1975, o tenente-coronel Leal de Almeida estava em Lisboa, mais precisamente no RALIS. O que fazia nesse quartel o antigo instrutor de comandos na Guiné? Era comandante.
Marcelino da Mata repetiu não só que Leal de Almeida esteve presente enquanto ele foi torturado, como que o então comandante do RALIS desempenhou um papel activo nessas sessões de tortura. No depoimento que Alpoim Galvão transcreve em “De Conakry ao MDLP”, Marcelino da Mata afirma que nessa madrugada de 18 de Maio de 1975 Leal de Almeida “disse que os pretos só falavam quando levavam porrada e eram torturados, e que não tinha outra solução senão ordenar que me fizessem iss.”. (Leal de Almeida, tal como Quinhones, negam ter participado na tortura a Marcelino da Mata, e aos outros detidos no âmbito desta operação.)
O que acontece com Marcelino da Mata entre 17 e 19 de Maio de 1975 é um dos episódios mais perturbantes do PREC. Não apenas porque se recorre à tortura – o que está longe de ser caso raro nesse período – mas também, e sobretudo, por aquilo que o seu caso (e o dos outros elementos detidos no âmbito desta operação desencadeada pelo MRPP) revela sobre o que acontecia dentro dos quartéis. E como as Forças Armadas tinham entrado num processo quase suicida. Não por acaso, muitas das perguntas feitas a Marcelino da Mata incidiam precisamente sobre as ligações que o comandante do Regimento de Comandos n.º 1, Jaime Neves, teria ao ELP. Sabe-se que o nome de Salgueiro Maia foi também apontado por alguns dos interrogados como fazendo parte da rede conspirativa reaccionária.
Na noite de 19 de Maio de 1975, Marcelino da Mata foi levado para a prisão de Caxias, onde foi mantido em regime de incomunicabilidade durante meses. Em Outubro é posto em liberdade. Vai para Espanha. Trabalha numa oficina. Viaja clandestinamente à Guiné. Regressa finalmente a Portugal depois do 25 de Novembro. Correm histórias sobre a vingança que prometeu levar a cabo entre aqueles que o torturaram e também sobre a sua enredada vida familiar. É graduado em tenente-coronel. Às vezes, nas entrevistas que vai dando, acerta contas com alguns militares de Abril. Como? Lembra-lhes como se comportaram em África. Marcelino da Mata nem sempre é exacto nos números — na “Mar Verde” matou 94 homens, como diziam as chefias, ou quase o dobro, como ele argumentava? No paiol de Kumbamory destruiu 130 toneladas de armamento, como relatou, ou “apenas” 90, como defendia Almeida Bruno, o militar que chefiou esta operação? Mas nunca lhe apontaram uma falha nos relatos que faz sobre as operações em que participou. Muito menos lhe respondem quando ele recordava histórias de cobardia e incompetência que muitos queriam esquecer.
Agora que a Covid o levou, esta quinta-feira, dia 11, esperemos que nesse algures onde chegou lhe tenham reservado um lugar à medida do seu temperamento. Convém não esquecer que há sempre a possibilidade de o ouvir dizer de novo: “Eu não fico cá. Ou me mandam para uma zona operacional ou fujo daqui”.
OBSERVADOR(Lisboa) – 12.02.2021
Fonte: Moçambique para todos
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