Documentos inéditos revelados 70 anos depois: Torpedo rebenta em Santa Clara causando pânico e estragos
28 Dezembro 2010 [Reportagem]
O jornalista Gustavo Moura desenvolveu um trabalho de investigação na busca de elementos sobre o submarino que há 70 anos lançou um torpedo contra a localidade de Santa Clara (hoje freguesia), destruindo a empena de uma casa e provocando o caos entre populares. Desde a Alfândega de Ponta Delgada à Royal Navy, passando pela lucidez de alguns historiadores e investigadores micaelenses, obteve alguns documentos que são publicados, nesta reportagem, pela primeira vez na Imprensa açoriana. É o caso do submarino ‘Trident’ de onde foi lançado o torpedo e do seu diário de bordo, onde é referenciado o ocorrido a Sul de Ponta Delgada. É um trabalho jornalístico de investigação que constitui, por si, um documento que leva a reescrever a História deste incidente que colocou os Açores como alvo alemão real nos anais da II Guerra Mundial.
Nota Prévia: Agradeço aos meus Amigos, Professora Doutora Gabriela Funk, Dr. Sérgio Resendes, Dr. Luís Manuel Amaral, que foi Director da Alfândega de Ponta Delgada e Manuel Romualdo Pimentel da Silva, que foi funcionário civil da Capitania do Porto de Ponta Delgada, os elementos que me cederam para a redacção deste apontamento histórico. Também estou grato aos serviços de arquivo histórico da Royal Navy, na pronta e detalhada resposta dada às minhas perguntas.
Completaram-se ontem, dia 27, setenta anos que Ponta Delgada acordou com um grande estrondo. Estava-se a 27 de Dezembro de 1940, tempos iniciais da Segunda Guerra Mundial. Rapidamente se localizou o local do estrondo, o bairro de Santa Clara, mais propriamente no calhau das traseiras das Ruas Teófilo Braga e Primeira Rua de Santa Clara, para aonde se dirigiu muita gente e as autoridades locais. Pânico entre os moradores, vidros partidos e outros estragos eram os resultados visíveis. Ao lusco-fusco matinal, enevoado e o mar agitado permitiam ver, afirmavam alguns, a torre de um submarino a submergir, enquanto entrava na baía da doca, sem aguardar piloto, um cargueiro de bandeira do Panamá, um registo de conveniência, na altura muito usado por navios que queriam navegar sob bandeira de países não beligerantes. O navio era o cargueiro “Bonita”. Logo se estabeleceu que teria sido um submarino alemão que tentara torpedear o “Bonita” mas os torpedos falharam o alvo e chocaram contra a costa. Um explodiu e um outro ficou encalhado no calhau e mais tarde foi desarmado por elementos especializados da marinha de guerra portuguesa.
Esta é a história que ficou conhecida publicamente e consta de um ofício dirigido ao Governador Civil e assinado pelo Chefe da Policia de Segurança Pública local, Costeira. Assim perdurou por muitos anos, a par de rumores que teria sido uma tentativa alemã de destruir os tanques de óleo da “Casa Bensaúde” e outras estórias correntes naqueles tempos conturbados, favoráveis ao aparecimento dos mais fantasiosos boatos…
Terminada a Segunda Guerra Mundial, escalou Ponta Delgada um grupo de submarinos italianos, que se renderam às Forças Aliadas, sob escolta de um rebocador da marinha guerra dos Estados Unidos e outro boato começou a circular. Que um marinheiro italiano de um desses submarinos teria dito a um funcionário da então Junta Autónoma dos Portos de Ponta Delgada, que estava a bordo do submarino que lançara os torpedos naquela já distante madrugada de 27 de Dezembro de 1940. Foi mais uma estória a engrossar as muitas sobre o episódio que marcou aquela madrugada.
Sempre interessado pelas questões relacionadas com a Segunda Guerra Mundial e os acontecimentos da época ligado aos Açores, dediquei algum tempo dos meus dias de reforma a procurar essas áreas e conversando com a Professora Gabriela Funk e o Dr. Sérgio Resendes, este ofereceu-me fotocópia de um oficio datado de 16 de Junho de 1941, do Governador Civil de Ponta Delgada, ao tempo o Capitão Rafael Sérgio Vieira, dirigido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros acusando a recepção de um cheque de 30.269$00 para pagamento dos estragos causados pela explosão do torpedo na madrugada de 27 de Dezembro de 1940, importância que tinha sido entregue ao Governo Português pela Embaixada da Inglaterra, em Lisboa.
O facto de ser a Inglaterra a pagar a reparação dos estragos, permitia supor que os ingleses teriam alguma responsabilidade no episódio, o que nos levava a procurar as razões para isso.
E assim nos aproximamos da verdade dos acontecimentos. A credibilidade das fontes consultadas, além das personalidades referidas na nota prévia e dos arquivos da Royal Navy, dá-nos essa confiança.
Os dois torpedos, um explodiu e outro encalhou e foi desarmado, afinal eram parte de uma salva de cinco torpedos que o submarino inglês “Trident” lançou contra o cargueiro “Bonita” que se aproximava de Ponta Delgada. Segundo o que conseguimos apurar, o “Trident” patrulhava ao largo da costa Sul de São Miguel com ordens para afundar, sem aviso prévio, qualquer navio alemão ou que navegasse de forma suspeita e se aproximasse de Ponta Delgada. O Almirantado inglês tinha informações de que a Alemanha projectava tomar pela força os Açores para estabelecer bases e uma delas seria em São Miguel aonde estavam os tanques de óleo que abasteciam navios ingleses e das nações aliadas.
O “Trident” estava na sua base em Holy Loch, na Escócia, a norte da Inglaterra, e a 17 de Dezembro de 1940 recebeu ordens para aquela missão, largando sob o comando do capitão-tenente G.M. Sladen. No diário de bordo desse dia diz-se que as ordens eram para “atacar qualquer navio navegando sem iluminação”. No dia 27, e voltamos a citar o diário de bordo, descreve-se o episódio com o “Bonita” dizendo-se que o navio foi avistado a navegar sem luzes com rumo ao porto de Ponta Delgada e que interpelado não respondeu, continuando a navegar para o porto. Feito um tiro de aviso, o “Bonita” parecia ter hesitado no rumo mas retomou o caminho do porto. Como o canhão do submarino se encravara foi decidido disparar uma salva de cinco torpedos, dos quais dois vieram chocar com as rochas, perdendo-se os outros três.
Há aqui uma questão que não conseguimos esclarecer. O diário de bordo do “Trident” designa o navio como o “Router” e nem mesmo o arquivo histórico da Royal Navy tem uma explicação para isso. Todos os documentos consultados, inclusive da marinha alemã, citam o “Bonita” e não dão explicações para aparecer o nome “Router” no diário de bordo do “Trident”.
Mas retomemos o fio à história.
O “Bonita” entrou no porto e atracou para tomar óleo e pequenas reparações. Esteve consignado à “Casa Bensaúde” e navegava de Inglaterra para a Argentina carregado de carvão para aonde seguiu a 6 de Janeiro. Era comandado pelo oficial da marinha norueguesa O.J.Hekermann (?). O nome no registo existente nos arquivos da Capitania do Porto de Ponta Delgada está numa má caligrafia por isso não há a certeza que seja assim o nome correcto.
O “Bonita” foi construído nos Estados Unidos em 1917 e entrou ao serviço com o nome de “Sacramento”. Tinha 7.462 toneladas de porte bruto e depois de pertencer a vários armadores sediados em São Francisco, nos Estados Unidos, passou em 1940 a pertencer à “U.S.Maritime Commission”, uma entidade governamental com sede em Nova York que geria o esforço de ajuda de guerra à Inglaterra, e passou a ter o nome de “Bonita”. Em Maio de 1946, um anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi vendido a armadores escandinavos passando a chamar-se “Othello”. Mais tarde passou a ser o “Kongshavn” e foi abatido em Novembro de 1953.
Nesta sua comissão de patrulha ao largo de São Miguel, o submarino “Trident” teve mais um percalço que o diário de bordo e os registos da marinha de guerra inglesa a que tivemos acesso não pormenoriza. Apenas regista que envolveu o cruzador ligeiro “HMS Kenya” e várias corvetas que escoltavam o navio “Empire Trooper” navegando para Ponta Delgada para reparações e cuja presença na área não tinha sido comunicada. Mas esta é a dramática história do ataque de um grupo, a que se dava o nome de alcateia, de submarinos alemães a um comboio a norte dos Açores, um dos mais mortíferos combates da Batalha do Atlântico…. que fica para outra altura.
Autor: Gustavo Moura
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