segunda-feira, 11 de março de 2013

Cobrança do IVA gera “devassa” da vida privada dos contribuintes através da emissão e controlo de facturas

11 Março 2013 [Regional]

Grupo de açorianos pede à Procuradora Geral da República inconstitucionalidade da legislação nacional
Um grupo de cidadãos dos Açores apresentou uma queixa à Procuradora Geral da República, Joana Marques Vidal, pedindo que desencadeie o processo de inconstitucionalidade da legislação nacional que obriga as pessoas singulares e colectivas que pratiquem operações sujeitas a IVA a comunicar à Autoridade Tributária a Aduaneira (AT), por transmissão electrónica de dados, os elementos das facturas emitidas nos termos do Código do Imposto de Valor Acrescentado.

No entender dos autores da queixa, “a exigência feita às empresas e aos particulares é um meio de devassa à vida privada dos cidadãos, constituindo uma ameaça à sua liberdade e aos seus direitos de cidadania”.

A legislação obriga a que a factura tenha o número de identificação fiscal do emitente, o número de factura e a data de emissão, além do número de identificação fiscal do adquirente que seja sujeito passivo de IVA, quando tenha sido inserido no acto de emissão.

No entender dos proponentes da queixa, tal preceito “serve para combater a fuga ao fisco, mas a sua execução coloca várias questões sobre o direito à privacidade dos cidadãos, isto porque toda a facturação é remetida à Autoridade Tributária através de um ficheiro informático denominado ficheiro SAF- T.”

Acontece que o ficheiro SAF-T enquanto software certificado, coloca uma assinatura digital nas facturas passadas a cada cliente “garantindo depois, que a factura emitida jamais será modificada”.

Ficheiro SAF-T expõe a vida
das pessoas e empresas

Segundo a informação citada na queixa, o ficheiro SAF-T era, até 1 de Janeiro de 2013, um ficheiro de auditoria, que era fornecido ao inspector das finanças nos (muito raros) eventos de inspecção das finanças. Este ficheiro sozinho “garante que a empresa não foge aos impostos (cruzando com dados multibanco e bancários), não altera os valores e dados das suas facturas e é ainda possível conferir mais uma série de dados”.

Estes ficheiros SAF-T são gerados no momento, e podem ser gerados para períodos de tempo diferentes, um ano, um mês ou mais.

Ora, um ficheiro SAF-T guarda os dados gerais da empresa tais como (morada, nome, nif, conservatória etc.). Os dados de todos os clientes da empresa (nome, morada, contacto telefónico, email, nif) bem como a informação de todos os produtos ou serviços vendidos pela empresa (referência, designação do produto). Além disso, o ficheiro contém ainda os dados de facturação (para cada factura: data, hora, Nif e nome do cliente, produtos vendidos, valor, com e sem IVA etc.).

Até ao dia 1 de Janeiro de 2013 muitas empresas usavam os talões e vendas a dinheiro, cujo cliente era o “consumidor final” e o Nif usado era 99999990, ou seja, informação genérica.
Agora, com o envio mensal de todas as facturas de cada empresa para a Autoridade Tributária nos termos do Decreto Lei nº 198/2013, fica registado por exemplo que determinado cidadão toma o pequeno almoço no café da rua tal (factura 1) e vai depois à sede do partido X pagar a sua cota mensal (factura 2). Passa pelo templo da sua religião e paga o dízimo (factura 3). Almoça no seu restaurante favorito (factura 4), vai ao cinema ver um filme (factura 5), compra 2 “brinquedos” (factura 6) e janta depois num restaurante à beira mar (factura 7).

Estas sete facturas são enviadas pelo ficheiro SAF-T e chegará às finanças a informação do local e a hora que o cidadão comeu, qual é a sua filiação partidária, qual é a religião que professa, em que restaurante costuma almoçar, que cinema costuma frequentar, que brinquedos compra e em que restaurante costuma jantar.

“Estes ficheiros serão manipulados por terceiros e poderão até sê-lo por empresas privadas”, concluem os autores da queixa.

Constituição salvaguarda Intimidade da vida privada

Citam, em sequência, os autores da queixa a Constituição Portuguesa quando refere que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

A Constituição determina que a lei estabelecerá “garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”.

“A lei garantirá” também, segundo a Constituição, “a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica”.

É igualmente estabelecido que “a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.

No seu artigo 35, a Constituição Portuguesa estabelece, por fim, que “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhe digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam nos termos da lei”.

A lei “define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente”.

“A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis”, lê-se na Constituição Portuguesa que “proibe o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei”.

Pedida a inconstitucionalidade

Ora, no entender dos autores da queixa entregue na Procuradoria da República, o Decreto-Lei 198/2013, que estabelece a obrigação de apresentação de facturas, “viola tais princípios constitucionais ao tornar obrigatório o envio pelas empresas à Autoridade Tributária e Aduaneira, de todas as facturas mensalmente emitidas aos clientes que solicitaram a prestação de um serviço e/ou a compra de qualquer bem, porquanto a partir do cruzamento informático de todas as facturas mensalmente recebidas, os serviços de Finanças podem reconstituir a vida quotidiana de qualquer cidadão, deixando-o à mercê de qualquer entidade pública ou privada que aceda a tais elementos”.

Salientam que “a exigência feita às empresas e aos particulares é um meio de devassa à vida privada dos cidadãos, constituindo uma ameaça à sua liberdade e aos seus direitos de cidadania”.

Segundo a queixa, o governo, ao legislar da forma como o fez, “pretendia certamente combater a fuga ao fisco, mas abriu a caixa de pandora que torna qualquer cidadão numa presa fácil perante os perigos que advêm dos elementos vertidos nas facturas e que constituem o roteiro diário de cada pessoa ou de cada família”.

Os autores da queixa realçam que o Decreto-Lei em causa foi publicado em pleno Verão, “e talvez por isso só se deu conta dos malefícios que ele causa, ao tornar-se obrigatório no dia 1 de Janeiro de 2013 o envio da informação que nele se determina à Autoridade Tributária e Aduaneira”.

Concluem que “se vivêssemos o período da Inquisição não existiria melhor meio de delação”.
Nestes termos, e pelas razões invocadas, é pedido à Procuradoria Geral da República que proceda à analise da matéria exposta e desencadeie o processo de pedido de inconstitucionalidade das normas que violem a Constituição Portuguesa.
 
Autor: João Paz

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