Quando o governo chinês anunciou em 2014 um plano para a criação de um “sistema de crédito social”, os alarmes de todos que já leram 1984 uma vez na vida tocaram. A ideia, por mais distópica e absurda que podia parecer consistia em uma plataforma de avaliação por pontos de cada cidadão, empresa ou empreendimento do País do Meio, o que se reverteria em mais e melhores condições de vida e negócios para os melhores rankeados e uma situação de ostracismo e marginalidade para os com poucos pontos.
Pois bem, não só o plano segue a todo vapor como já está em fase de testes, e as primeiras impressões são aterrorizantes para dizer o mínimo.
Não é de hoje que o governo chinês trabalha para controlar e prever as ações de cada um dos mais de 1,3 bilhão de cidadãos chineses, mas uma coisa é combater dissidentes e outra completamente diferente é o princípio por trás do Zhima Credit, onde “zhima” significa “sésamo”. Sim, a referência é Ali Babá e os 40 Ladrões mesmo, uma plataforma fechada cuja porta só revelará suas vantagens e riquezas não a quem disser a frase correta, mas a quem se comportar direitinho. E também porque a Alibaba é uma das empresas por trás da tecnologia, claro.
O Zhima Credit funciona atrelado ao app do AliPay, ele atribui uma pontuação de acordo com os hábitos do usuário. Como quase todo chinês possui conta no serviço de dinheiro eletrônico empurra-lo goela abaixo nem é tão difícil, mas ao menos por enquanto a adesão é voluntária e restrita a algumas localidades e serviços; até 2020 o governo chinês planeja implanta-lo compulsoriamente, “de modo a permitir que os cidadãos confiáveis tenham acesso a tudo e possam ir a qualquer lugar, enquanto os indignos de confiança não possam dar um passo sequer”. E essa frase é o slogan oficial.
É importante frisar que a solução da Alibaba é apenas uma de ao menos oito em fase de testes, de companhias diferentes. Acontece que o Zhima Credit é de longe a maior delas, dada a praticidade de anexa-la a um serviço extremamente popular e quase essencial. A outra solução de grande porte é a China Rapid Finance, controlada sem muita surpresa pela Tencent e que usa a plataforma WeChat para coletar os dados.
A funcionalidade, como sempre acontece surgiu de uma necessidade: o sistema bancário da China é deveras ineficiente, quase simplório no que diz respeito à manutenção de dados das pessoas. O Banco Popular da China, a reguladora central estatal (lembre-se, no papel eles ainda são uma nação socialista) possui os dados mas não o utiliza, a maioria dos chineses faziam suas operações com dinheiro vivo e poucos possuíam cartões de crédito de outros bancos se não os seus próprios, pela dificuldade em cruzar informações.
Com o AliPay isso mudou, a carteira virtual permitiu todo mundo fazer operações rápidas de forma prática e desnecessário dizer, a plataforma da Alibaba e de sua principal concorrente no país, a Tencent são ecossistemas que oferecem serviços de uma gama de empresas dentro de suas redes. AirBnb, Uber e seu concorrente local Didi, Youku (o concorente local do YouTube), etc. Logo, essas gigantes possuem uma coleção de dados e hábitos dos chineses imensa. Daí a utiliza-los para controlar a população é moleza, dado o regime em que o Estado concentra todo o poder nas mãos.
Como esses sistemas de crédito social funcionam então? A atribuição dos pontos leva em conta uma série de fatores, desde a pontualidade do cidadão com pagamentos a hábitos de compra, mas vai MUITO além disso. O politburo espera utilizar a plataforma como uma forma de controle autoritário social mais brando e invisível, oferecendo vantagens e acesso a produtos e serviços apenas a quem andar na linha. Os hábitos online também serão levados em conta, bem como os lugares que frequenta, as pessoas com quem convive, enfim, tudo será quantificado e traduzido em pontos sociais que indicarão se você é um chinês exemplar ou a escória da sociedade. Pense no FICO Score dos Estados Unidos, mas não apenas para crédito.
Quanto mais pontos o usuário tiver (a pontuação do Zhima Credit começa em 300 e vai até 850 pontos) mais confiável o cidadão será, e mais vantagens e acessos ele terá: alugar carros, furar filas em aeroportos, ter prioridade em apps de encontros, descontos ou reservas (ou mesmo entrada permitida) em hotéis, restaurantes, crédito adiantado para operações financeiras, enfim, todo o tipo de coisa básica ou algumas vantagens interessante.
Li Yingyun, diretor de tecnologia do Zhima Credit foi categórico ao dizer que certos perfis e traços pessoais serão preferidos no algoritmo de avaliação, que tanto a Alibaba quanto a Tencent e outras não revelam como funcionam nem sob tortura (eles se limitam a dizer que o processo é “complexo”): o ato de uma pessoa comprando fraldas, indicando se tratar de um chefe de família fará com que os pontos subam, enquanto um viciado em games que joga várias horas por dia cairá no ranking ao ser considerado um preguiçoso. E o que o algoritmo dirá de pessoas solteiras? Ou de casais homoafetivos ou estéreis, eles serão preteridos por serem quem são? Ao que tudo indica, provavelmente.
Os chineses que ficarem no rodapé do ranking não terão nenhum tipo de regalia e até mesmo poderão ser impedidos de ter acesso a serviços básicos, o que servirá também para inibir comportamentos subversivos. Indicações de como estão sua saúde como consumo de antidepressivos, hábitos corriqueiros como a forma que o cidadão escreve, suas companhias e o que elas fazem da vida… nada escapará ao olhar e tudo será quantificado.
Em suma, quem quiser ter uma vida minimamente saudável terá que dançar conforme a música do Partido Comunista da China.
O Wired ilustrou o caso de Liu Hu, um jornalista de 42 anos que embora não tenha aderido ao Zhima Credit, caiu do mesmo jeito na malha fina por um artigo difamatório que ele escreveu no passado e pelo qual foi processado, mas já havia quitado os débitos com a justiça. Mesmo assim seu nome foi parar na lista negra na Suprema Corte Popular, o chamado “hall dos desonestos” que é uma lista pública e por coincidência, é a mesma utilizada pela plataforma da Alibaba para identificar os indesejáveis.
Conclusão, Liu se tornou um “cidadão de segunda classe” que não pode fazer reservas em hotéis e restaurantes de qualidade, é obrigado a viajar nos piores lugares dos trens mais lentos e está impedido de fazer empréstimos de valores altos. E ele nem aderiu ao sistema.
Ao menos para a população da China, o futuro não parece nada promissor.
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